A partir de um ato falho, Lacan nos propôs um novo conceito: Lalangue. O termo é uma condensação de palavras, utilizado para enfatizar a natureza irredutível da linguagem na psicanálise.
Em contraste com langue, que é a estrutura gramatical e vocabulário que formam uma língua, e parole, que é a manifestação individual da língua nos discursos, lalangue desafia as noções estruturais da linguagem. Ela evoca o aspecto não codificado e fragmentado do inconsciente, sendo um veículo por meio do qual ele se manifesta.
Lalangue é o funcionamento antes da palavra, que ecoa lallare – verbo latino que nomeia o balbucio da criança que ainda não fala, mas que produz sons. Os primeiros balbucios e sons dos bebês, chamados de lalação, são precursores da linguagem estruturada.
Para a psicanálise, a lalação é o processo pelo qual os bebês começam a experimentar os limites dessa língua, ainda estrangeira, e também os efeitos das impressões vindas do Outro. É a exploração da linguagem como algo além das necessidades, evidenciando o gozo que ela veicula sobre o corpo.
Diferentemente do simbólico, em lalangue o significante não se prende ao duplo sentido. Lalangue é uma exceção, algo além na relação entre língua e linguagem, é aquilo que fratura, é o lugar onde há um saber que não se sabe, onde insiste o impossível, o real da língua.
História do conceito
Durante a primeira lição do seminário O saber do Psicanalista, ao referir-se à Bataille e suas colocações sobre o “não saber” para falar sobre o ponto fronteira entre o saber e a verdade, Lacan retoma o conceito do inconsciente estruturado como uma linguagem.
É nesse momento que lhe ocorre um lapso e, ao invés de dizer sobre o Dicionário de Psicanálise, elaborado por Laplanche, Lacan diz sobre o Dicionário de Filosofia, elaborado por Lalande – conhecido como Le Français de la Lande. Diz então: Lalangue no lugar de Lalande.
Os significantes Laplanche, Lalande e La langue se condensam em Lalangue, um conceito que representa a linguagem do inconsciente, a fronteira entre a verdade e o saber.
Lacan já tinha antecipado, há alguns anos, em Lituraterra, que o discurso analítico tem raízes mais profundas na homofonia e na homonímia do que na etimologia. Ressaltando a importância das associações de sons e significados na psicanálise, em contraste com o estudo da origem linguística.
Lalangue representa o desafio que Lacan propôs à compreensão convencional da linguagem e sua tentativa de forjar um conceito que escapasse das definições da linguística. Ele apresentou algo além, considerando a linguagem um território profundo, que não pode ser plenamente capturado por definições formais – reforçando a natureza disruptiva de sua abordagem à linguagem.
Podemos observar a presença desse conceito ao longo da obra de Lacan, cada um oferece uma perspectiva sobre como a lalangue está enraizada na experiência psicanalítica e na relação entre linguagem, inconsciente e subjetividade.
Mosaico de citações
“Lalangue – não a língua dos linguistas ou a dos gramáticos, nem mesmo a língua materna, que é uma das figurações de lalangue, mas apenas uma língua entre outras – se constitui na heterotopia: é por isso, também, que ela constitui igualmente substância, matéria possível para as fantasias [fantasmes], conjunto inconsistente de lugares para o desejo – a língua é, desse modo, aquilo que o inconsciente pratica, prestando-se a todos os jogos imagináveis para que a verdade, no compasso das palavras, fale.” (MILNER, [1978] 2012, p. 22 apud BALDINI E RIBEIRO, 2016, p.171.)
“O inconsciente, por ser ‘estruturado como uma linguagem’, isto é, como lalangue que ele habita, está sujeito à equivocidade pela qual cada uma delas se distingue. Uma língua entre outras não é nada além da integral dos equívocos que sua história deixou persistirem nela. É o veio em que o real – o único, para o discurso analítico, a motivar seu trabalho, o real de que não há relação sexual – se depositou ao longo das eras.”(LACAN, [1972] 2003, p. 492.)
“O sintoma como signo do real, parceiro do sujeito, é justamente o que vem responder como solução ao problema da divisão subjetiva. A letra é a escrita como função do sinthoma a partir de lalangue – conceito que Lacan introduziu para redefinir o inconsciente. Lacan propõe escrever o sinthoma como uma função, que ele identifica com a letra, para pontuar que o sintoma se escreve. A letra é a escrita do sintoma como signo do real, sinal do real; é a escrita do gozo do sintoma.”(ANTONIO QUINET, 2016, p. 250.)
“Se eu disse que não há metalinguagem, foi para dizer que a linguagem não existe. Não há senão suportes múltiplos de linguagem que se chamam lalangue, e que seria preciso mesmo é que a análise chegue a desfazer pela palavra o que foi feito pela palavra.” (LACAN, 1977-1978, p.5.)
Referências Bibliográficas
BALDINI, Lauro José Siqueira; RIBEIRO, Thales de Medeiros. O Que é a Língua se a Psicanálise e o Materialismo Histórico Existem?. In: Linguística e Instrumentos Linguísticos, 2016. Disponível em: < http://www.revistalinguas.com/edicao38/edicao38.pdf. > Acesso em: 04 de junho de 2023.
CAMPOS, Haroldo. O Afreudisíaco Lacan na galáxia de lalingua, Freud, Lacan e a Escritura, 1995. In: Cesarotto (Org.), Ideias de Lacan (p. 69-75). Editora Iluminuras.
LACAN, Jacques. Leçon 1, 15 Novembre 1977. In: Le moment de conclure (1977-1978). Disponível em: <http://www.lutecium.org/Jacques_Lacan/Media/pdf/1977.11.01-25-moment-conclure.pdf .> Acesso em: 04 de junho de 2023.
LACAN, Jacques. O Aturdito. In: Outros Escritos. [1972] 2003. Editora Zahar.
MILNER, Jean-Claude. Antes de dizer. O Amor da Língua. [1978] 2012. Editora da Unicamp.
QUINTET, Antonio. Lalíngua e Sinthoma. In: Linguística e Instrumentos Linguísticos, 2016. Disponível em: < http://www.revistalinguas.com/edicao38/edicao38.pdf.> Acesso em: 04 de junho de 2023.
ROCHA, Alessandra Tomaz. Lalangue: O Uso do Lapso. In: 25º Jornada Brasileira de Psicanálise EBP-MG, 2021. Disponível em: <https://www.jornadaebpmg.com.br/2021/wp-content/uploads/2021/05/Jornada-EBPMG2021-Ecos1-Alessandtra-Rocha.pdf .> Acesso em: 04 de junho de 2023.
VERAS, Viviane. O extrangeiro na língua materna: (não) desejar as coisas alheias. Revista Polyphonía, Goiânia, v. 19, n, p. 111–124, 2009. Disponível em: < https://revistas.ufg.br/sv/article/view/6074/4665 >. Acesso em: 04 de junho de 2023.